quarta-feira, 4 de maio de 2016

A nota

          O maior risco da interpretação é o intérprete ver no texto o que não existe. A essa prática, dá-se o nome de superinterpretação. Superinterpretar é ir muito além do que está dito. É propor intenções, sugestões, duplos sentidos, quando o que se evidencia não passa muitas vezes de mediocridade. Isso pode ocorrer de boa ou má-fé.
           Um exemplo de má-fé está na correção que certo professor fez ao texto de um estudante que “precisava passar”. O tema da redação era “a amizade”, e o aluno se limitou a escrever: “Num tô afim de falá disso agora, pô. Tô sem ninguém.”
          O mestre lhe deu 8,0, que era nota a necessária para a aprovação. Convocado à diretoria para se explicar, redigiu o seguinte comentário:
        “O texto é sintético, ou seja, não revela o pecado da verborragia. A economia de meios expressivos se constitui num importante fator de coerência, pois o excesso de palavras não combinaria com a resolução do aluno em não escrever. Essa atitude de recusa, em que se percebe um misto de tédio e rebeldia, determina o minimalismo que orienta toda a redação.
         “Vejamos algumas provas disso. O advérbio ‘não’ é trocado por ‘num’, bem mais incisivo devido à ausência do ditongo. Com um ‘não’ é possível negociar; com um ‘num’ -- abusado e peremptório -- jamais. Merece também realce a troca de ‘estou’ por ‘tô’, em que a supressão do fonema inicial (aférese) reforça a propensão ao tartamudo, ao pontual, ao monossilábico, própria de quem não quer muita conversa. 
“A seguir vêm duas infrações à norma culta que, no entanto, se tornam funcionais no contexto de rejeição instaurado desde as primeiras linhas. A troca de ‘a fim’ por ‘afim’ (um erro de morfologia) justifica-se pela intenção de condensar o sentido dos homônimos. É como se o valor de finalidade, contido na locução adverbial, se enlaçasse à ideia de afinidade presente no adjetivo, numa espécie de fusão fonossemântica que procura destacar a indisposição afetiva.
          “Essa indisposição também explica a forma verbal “falá”, pois a presença do ‘r’ sugeriria uma vibração em nada condizente com o ânimo do autor (de uma exasperada contundência). Tal ânimo também se confirma no uso do monossílabo de teor exclamativo que aparece no fim do período: ‘pô’. Esse ‘pô’ enfático, misto de interjeição e vocativo, acentua a dramaticidade da negativa.
         “No segundo período repete-se a aférese (Tô), mas agora seguida por uma expressão em português correto (“sem ninguém”). Nessa parte do texto, de um confessionalismo despojado, o aluno explica suas razões. Percebemos que sua recusa, e consequentemente seus deslizes, se deve a ele estar sozinho e por isso não ver sentido em escrever sobre a amizade. Compreendemos então que a rebeldia que perpassa o texto foi determinada por razões existenciais, as quais encontraram um correlato perfeito nas escolhas linguísticas. Essa é a explicação para a nota que lhe dei.”
       O aluno acabou passando. O professor, claro, perdeu o emprego. Algum tempo depois, foi contratado pelo jornal da situação. Dizem que sua principal função no órgão é fazer a crítica dos poemas do governador.

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