“Festa do
pecado” – foi com esse tipo de rótulo que o Carnaval, desde cedo, apresentou-se
à minha imaginação. Falava-se nele como “festa da carne”, alegria dos baixos
instintos, frenesi do demo. Por isso eu sempre o recebi com uma ponta de
remorso. Brincar o carnaval era transgredir não sei que piedosas regras, era
comprometer-se com o inferno. O corpo gozava, mas esse prazer de poucos e
efêmeros dias acabava tendo um preço.
No
entanto o Carnaval não é penas gozo do corpo, prazer dos instintos. Comporta
uma outra dimensão, cheia de fantasia e sonho, alimentada pelo dramatismo de
paixões que entristecem e dilaceram. Em cada folião ou foliã anônimos, sonhando
nas esquinas sombrias com o próximo parceiro, reflete-se a paixão transfigurada
de Pierrô, Colombina e Arlequim. Ninguém admite que saia à rua apenas para
brincar – pelo contrário: a brincadeira é também esperança de algo maior,
transcendente. É o sonho de uma grande paixão, o desespero fantasiado em riso.
Dos autores que escreveram sobre essa
festa, um dos que mais me impressionaram foi João do Rio. Há em suas crônicas e
nos seus contos o sentimento do homem dividido entre a alegria e o remorso, e
para quem o prazer físico é uma emoção torpe. João do Rio retrata a belle époque, tempo de crise e subversão
de valores no qual as contradições, por mínimas que fossem, ganhavam um acento
patético. Mesmo descontando-se os exageros da época, ressalta de seus textos,
colorida e potencializada pelo impressionismo do estilo, a velha oposição entre
carne e espírito, que comumente vem à tona numa época como a de agora.
E
lá estão, nos textos do carioca, personagens ansiosos por mergulhar na noite,
perder-se na devassidão e no abismo de outros corpos. Vão arrependidos,
exalando em palavras de autocomiseração e tédio o odor de seus baixos
instintos. Até que são punidos por uma espécie de logro que lhes é dado pelo
objeto de desejo, que se apresenta horroroso e hediondo.
Assim,
por exemplo, a mulher mascarada e aparentemente linda revela-se, quando lhe
arrancam a máscara, doente e disforme. Não é uma Vênus, como parecia; é um
aleijão, de cujo nariz jorra pus. Por essa deformação estética, que frustra
qualquer possibilidade de satisfação física, corrige-se um desvio ético e
revela-se, ao mesmo tempo, o moralismo do autor. O esnobe e homossexual João do
Rio, tão criticado pela sociedade da época, não passava de um moralista severo.
Mas o nosso tempo é outro, bem mais
prático e comercial. Longe estamos dos excessos da belle époque. Hoje é o governo que alardeia preocupação com a nossa
saúde venérea, incitando-nos ao uso da camisinha. O pecado é não se prevenir,
ficar doente, mas não é errado transgredir os limites do corpo. Este parece
aberto a todo tipo de prazer. E a virgindade vale muito pouco.
Mesmo
assim o Carnaval ainda preserva o romantismo de outros tempos. É falsa, mesmo
na permissividade da folia, a alegação de que ninguém é de ninguém. Para além
do corpo que se oferece, em riso lúbrico e escancarado, sonhamos com alguém que
venha e não vá embora. Alguém que fique e nos socorra depois – quando a
lembrança do gozo desfeito não for mais que uma evidência de solidão.
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