domingo, 1 de maio de 2016

Esbórnias

Duas histórias de Carnaval. A primeira é a do casal que resolveu “se liberar” durante a festa.  A mulher disse ao marido: vá embora e só volte daqui a quatro dias. Prontamente ele deixou a casa e alugou um flat. Estava solto e só! Como era um tipo respeitável na cidade, resolveu comprar uma fantasia que lhe cobrisse o rosto. Não queria que ninguém testemunhasse seus excessos.
Ocorre que a mulher (Clotilde era o nome dela) também gozava da momentânea alforria. Não ia ficar em casa enquanto o marido pulava com uma odalisca qualquer. Teve também a ideia de comprar uma fantasia e seguir algum desses blocos líricos na aparência e fesceninos na essência, embora seus propósitos fossem virtuosos se comparados com os do marido.
Leandro (o nome dele) estava mesmo a fim de uma esbórnia. Ela queria apenas imaginar que, se lhe desse na telha, poderia viver uma aventura. Só “na telha”, que é um tapume para o mau tempo e as más intenções; não permitira que a ideia adentrasse algum cômodo do seu recatado espírito. Vestiu-se de “Rainha Etrusca”, uma caracterização que imitava a heroína de um filme a que assistira quando era solteira e ainda sonhava. 
         Para encurtar a história: na noite do sábado Leandro viu no meio da multidão aquela mascarada sensual. Ela tinha um jeito familiar, o que freudianamente lhe despertou o desejo.  Acercou-se e começou a paquerá-la. Clotilde deixou que o belo romano se aproximasse e fizesse voltas em torno dela, como um leão das antigas arenas cercando a presa. Fatalmente viria o bote. Leandro pegou-lhe na mão e sussurrou em seu ouvido:
-- Inferno ou paraíso, só vou saber depois que enlaçar o teu corpo. 
A mulher levou um susto. Já ouvira aquilo, e pela mesma voz. Sacou do rosto a máscara e:
-- Charlatão! Nem sequer foi capaz de mudar as palavras... A mesma cantada que jogou para mim anos atrás! 
          Desmascarado, só restou a Leandro seguir a mulher, que resolveu por entre tapas e beliscões antecipar-lhe a Quarta-Feira de Cinzas.                                          
                                                        ****
A segunda história parece um daqueles relatos de João do Rio que têm como cenário o clima mórbido da belle époque. Por exemplo: um homem vê uma mulher sozinha numa das esquinas sombrias da cidade. Ela acena para ele com um sorriso enigmático, e terminam indo a um local ermo, onde fazem amor. No fim ele descobre que a mulher era o fantasma de alguém que tinha morrido havia décadas... Brrrr!
Felisberto não passou por essa experiência apavorante, mas chegou perto. Era noite da terça-feira, o último dia para viver o que ainda não fora vivido. Depois disso, aguardava-o mais um ano de repartição, supermercado, macarronada dominical na casa da sogra.
           A cidade tinha uma louca, Ismênia, que costumava passear altas horas da noite pelas calçadas com seus cabelos desgrenhados e sua boca sem dentes. O leitor já imagina! Felisberto vê perto de um terreno baldio uma mulher solitária. Aproxima-se, lento e arfante, abraça-a por trás. Quando vai deitá-la, a mulher vira o rosto -- e sua gargalhada cortante molha em jatos o rosto dele. O homem corre para casa, lamentando o castigo. Tal como em João do Rio, só podia ter sido castigo. Por sinal muito severo, já que a esbórnia só ficara no desejo.

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