domingo, 1 de maio de 2016

Lavar a louça

          Estudo aponta que homem que lava a louça é mais feliz. Costumo auxiliar minha mulher nesse ofício e estou de acordo com o autor da pesquisa. Cheguei até a desenvolver uma tese: lavar a louça é a versão masculina de fazer tricô (até hoje eu não soube de homem que fizesse tricô. A razão é que certamente ele não teria habilidade para esse tipo de tarefa; ia se enrolar todo).
Dizem que o ato de cruzar os fios ao tricotar, urdindo-os com extrema paciência, diminui a ansiedade e acalma os nervos. Leva a um estado semelhante à ataraxia dos gregos ou à meditação dos orientais. Na lavagem da louça ocorre algo semelhante. Durante o processo só as mãos trabalham, de modo que o cérebro fica liberado para o devaneio ou o “esvaziamento” – o célebre “não pensar em nada” dos budistas. É um ato rico em simbolismo, pois envolve também a remoção de impurezas pela água.
A água, como se sabe, é o início de tudo. Nascemos aquáticos, boiando no líquido amniótico, e talvez por isso temos com ela uma relação especial. Sentir a água no corpo é um refrigério para o espírito. Vê-la ou ouvi-la fluir, mesmo de uma prosaica torneira de cozinha, nos dá um prazer que talvez só se explique por nossas antigas andanças através de florestas e savanas, ao cabo das quais parávamos à beira de um regato fresco e cristalino.
Na pia vemos o precioso líquido prestes a fluir diante de nós -- e ao lado um monte de pratos, panelas e talheres besuntados de gordura e outros resíduos que atestam a nossa necessidade de sobreviver, ou apenas a nossa gulodice. Todo final de refeição (ou melhor, todo final de qualquer ato fisiológico) traz uma quebra de encanto. A louça suja confirma essa verdade. Lavá-la é um meio de restaurar nossa grandeza de animais civilizados. 
É claro que para chegar a esse ponto devem-se superar obstáculos. O maior deles é “tirar o grosso”, operação a que não se procede sem alguma repulsa. Levar ao lixo os restos que se amontoam ou grudam nos pratos e panelas constitui o lado sujo do trabalho. Quanta diferença há entre estas sobras e o arranjo original dos alimentos, dispostos esteticamente nas travessas para despertar o apetite! 
Finda essa parte menos nobre, começa a lavagem propriamente dita. É durante ela que o espírito se deixa embalar, seduzido pelo cascatear brilhante. Tanto que nem sentimos o trabalho de passar a bucha com detergente, ou de raspar com uma faca os resíduos que grudaram. Fazemos isso de forma um tanto mecânica, pensando na próxima viagem, no filme que vimos no último fim de semana ou no livro que sonhamos escrever. Ou sobretudo não pensando em nada.
Enquanto a água jorra e os objetos dançam em nossas mãos, sentimos um estado muito próximo da felicidade. E tratamos de prolongá-lo virando e revirando os utensílios, que aos poucos recobram o antigo aspecto. Enfim, vitória... Só uma coisa costuma tisnar esse momento de euforia: o alerta da esposa para a sujeira que, por distração ou imperícia, deixamos passar. Não adianta invocar o argumento de que nada é perfeito. Vai ser preciso pegar de novo a bucha!

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