domingo, 1 de maio de 2016

Duplo sentido

O problema de conversar com Haroldo é que ele toma tudo ao pé da letra. Outro dia o encontrei no shopping e perguntei, a título de saudação:
-- E aí, Haroldo?
-- Aí onde? -- ele respondeu, olhando em torno, aflito.   
-- “Aí” não é lugar. É força de expressão para começar a conversa. Quero saber se está tudo legal.
Ele fez uma cara de espanto:
-- E por que não estaria?! Desde quando eu faço alguma coisa fora da lei? Lá em casa, meu pai...
-- Mas como você é desconfiado! Falei “legal” no sentido de “bem”. Nada a ver com transgressões à lei, pois sei que você é certinho. Jamais faria mal a um inseto.
-- Inseto? Não entendi, ou melhor: entendi a insinuação. Eu não faria mal a um inseto, mas a um bicho de outra espécie... Quer me complicar com o movimento de defesa dos animais? Não é apenas aos insetos que eu não faço mal.   
-- Pelo amor de Deus, Haroldo! Eu sei da sua consciência zoológica. Quanto a isso, você é “o cara”.
-- Que cara? Cara de quê? Seja mais explícito, por favor.
-- “O cara” quer dizer “o tal”. Ninguém supera você em respeito pelos bichos. Se fosse para decidir entre a vida de um avestruz e a de um ser humano, você sacrificava o ser humano. Ia preferir o avestruz. 
-- Você tinha que usar o avestruz para fazer essa comparação! Sei o motivo: avestruz bota a cabeça debaixo da terra para não ver o que se passa ao redor. Você quer dizer que eu sou alienado, indiferente ao que ocorre no mundo.
-- Puxa!
-- Puxa o quê?
-- Que saco!
-- Puxa-saco?! Essa não! Saiba que não nunca fui de bajular ninguém.
-- Eu disse “que saco!” porque não suporto mais. Com você não há diálogo possível. Não sei como sua mulher aguenta.

-- E quem lhe disse que ela aguenta ou não aguenta? O que você sabe da minha mulher?
-- Nada, ora. Se soubesse alguma coisa eu diria, pois não sou de guardar segredos. Minha vida é um livro aberto.
-- Em que página?
-- Não interessa a página, seu! Usei uma imagem. Quero dizer que não tenho segredos. As pessoas podem ler o livro da minha vida de cabo a rabo.
-- E desde quando livro tem rabo? Eu sei que ele tem orelhas, mas rabo...
-- Essa cansou minha beleza! Tchau. 
-- Como pode ter cansado uma coisa que não existe? Saiba que você não tem nada de bonito.
            -- E você não fica atrás. É feio como um parto.  
            -- Parto? De que tipo? Normal ou cesariana? Ei, vem cá... Explique isso direito, do contrário não vou poder dormir. Se há uma coisa que me tira o sono, é o duplo sentido.

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