Os
tempos estão confusos. Se vivesse hoje, Camões teria elementos de sobra para
lamentar o “desconcerto do mundo”. O que houve recentemente em Copacabana me
parece uma prova disso: li que o pichador da estátua de Drummond perpetrou o
seu inexplicável gesto para impressionar a namorada.
Li e reli, aturdido, para ver se
compreendia. Não propriamente o texto, que estava claro, mas o nexo entre a
ação do vândalo e o seu objetivo. Minha perplexidade vinha de que os namorados
sempre foram sensíveis à poesia. Os poetas têm sido históricos aliados da
paixão, tanto que os amantes costumam usar passagens de poemas como armas de
conquista. Esses trechos são como flores metafóricas, colhidas no jardim do
espírito e da sensibilidade, com o objetivo de tocar o coração do parceiro.
Um verso de Neruda ou de Vinicius vale
por uma declaração de amor. Eu mesmo devo ao Poetinha parte do sucesso na
empreitada de conquistar aquela que se tornaria minha mulher. Lá se vão
décadas, mas me lembro como se fosse hoje: no pátio da antiga Faculdade de
Filosofia, ditei para ela o “Soneto da fidelidade”. Desde o início (“De tudo ao
meu amor serei atento...”) até o fecho tão admirado: “mas que seja infinito
enquanto dure”. Ela certamente ficou
lisonjeada, e a partir daí deve ter sentido o autor desses versos como uma
espécie de patrono da nossa causa.
Jamais lhe ocorreria pichar uma estátua
ou um retrato de Vinicius, por isso achei estranho que a namorada de Pablo
(esse é o nome do pichador) pudesse se impressionar com o agressivo gesto do
parceiro. Drummond não é o Poetinha, está certo; não escreveu aqueles sonetos
de um lirismo terno e apaixonado, que encanta os adolescentes de todas as
idades. Tinha um áspero e duro coração mineiro, curtido no ferro de Itabira –
mas isso não o deve tornar objeto da antipatia das namoradas. Se a de Pablo
(que, por amarga ironia, chama-se Mel) tinha alguma birra com o autor de “O
amor ronca na aorta”, que a manifestasse por outros meios.
São de Drummond alguns dos versos mais
bonitos e profundos que a nossa lírica amorosa já produziu. Neles o amor
ultrapassa a dimensão interpessoal; não é apenas o amor dos apaixonados, mas o
amor como destino e condição para que o homem afirme a sua humanidade. Num
desses poemas, ele escreve: “Que pode uma criatura senão,/ entre criaturas,
amar? /amar e esquecer,/ amar e malamar,/ amar, desamar, amar?/ sempre, e até
de olhos vidrados, amar?
E lá está o poeta besuntado com piche
por inspiração de alguém que tinha tudo para enaltecer o Amor (esse amor
maiúsculo de que fala Drummond, pois a paixão nada mais faz do que propiciar o
enlace por meio do qual se perpetua a espécie). Rejeitemos veementemente o
gesto do rapaz. Que se pode esperar de um mundo em que os namorados desprezam
os poetas?
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