--
Você não notou nada diferente em mim?
Ele a contempla, apreensivo.
--
Notei, claro.
--
O quê?
--
Bem... -- Hesita, olhando-lhe com atenção o rosto, os braços, o vestido.
--
Aposto que não notou... Está mentido.
Insiste
que notou, para não desapontá-la. Alguma coisa nela está mesmo diferente, mas
ele não sabe o que é. Sempre detestou ser tão distraído.
--
Está bem, vou dizer: cortei o cabelo.
Ele
se perturba um instante, mas logo reage:
-- Era a isso que você se referia? Qual a
vantagem de perceber uma coisa que todo mundo percebe logo?
--
Você tinha notado?!
--
Claro! Não falei porque pensava que você se referisse a essa verruguinha --
aponta com o dedo. -- Na semana passada,
estava um pouquinho abaixo da boca. Hoje está mais acima.
Ela
se olha no espelho e vê, de fato, um pontinho minúsculo quase na linha lateral
dos lábios. Exclama:
--
Pôxa!! Você foi capaz de notar isso? Já vi que repara mesmo em mim. Abraça-o.
Ele suspira, aliviado. Dessa vez escapou, mas precisa ser mais atento.
****
Mal
ele chega, ela dispara, sorrindo:
-- Hoje é nosso aniversário!
--
Como, se eu nasci em julho e você em setembro?
-- Falo do aniversário do nosso namoro. Você
nem se lembrava...
E
agora? Ele não trouxe presente nem cartão. Tenta uma saída:
--
É que eu não sou pessimista como você, que conta nosso namoro em anos. Conto em
décadas, pois por mim a gente vai ficar para sempre juntos. Entendeu agora? Não
foi alheamento; foi... confiança no futuro.
****
Ele
acorda, olha o relógio e vê que perdeu a hora. Adormecera de cansaço em razão
do jogo de futebol. E logo numa data tão especial! Ela com certeza não ia
perdoar.
Dá um pinote até o banheiro, toma um
banho super-rápido e se manda para a casa da namorada. Encontra-a no alpendre,
o rosto vermelho de fúria e mágoa.
--
De... desculpe. Sei que me atrasei e não mereço ser perdoado.
--
Adormeceu?! Como é que você me deixa aqui plantada num dia como hoje?
--
Não mereço perdão, já disse. Mas parte da culpa é sua.
--
Minha?!
--
É que... eu estava sonhando com você. E
quando sonho com você, nem ouço o despertador. A gente nunca quer sair de um
sonho bom.
--
E como era o sonho?
--
Você estava bonita como sempre. Doce, meiga.
Ela respira fundo, segurando a custo a indignação. Olha-o com irônica seriedade:
Ela respira fundo, segurando a custo a indignação. Olha-o com irônica seriedade:
--
Pois faça o favor de voltar para casa e continuar a dormir. Me reencontre no
sonho... bonita, doce, meiga. Aqui estou o contrário de tudo isso. Adeus!
Entra,
fecha a porta e o deixa sozinho na noite.
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